A Igreja do Diabo
Este artigo explora a complexa e provocativa narrativa de 'A Igreja do Diabo', um dos contos mais intrigantes de Machado de Assis. A história, rica em simbolismo e crítica mordaz, nos mergulha nas profundezas da natureza humana, expondo suas contradições e hipocrisias. Uma reflexão sobre a sociedade contemporânea, a religião e sua relação com o bem e o mal. Os eternos dilemas humanos.
Igor Andrade Carvalho
6/18/20236 min read


"A Igreja do Diabo", um conto literalmente diabólico de Machado de Assis, mergulha o leitor em uma narrativa intrigante e profundamente simbólica que vai além do texto. Este título sugestivo introduz uma história onde o próprio Diabo, personagem central, decide fundar sua própria igreja. Na obra, Machado explora com maestria as nuances da natureza humana e a eterna luta do maniqueísmo religioso, em uma trama repleta de ironia e crítica mordaz.
De acordo com essa narrativa tão singular, em um belo dia [sim!], o Diabo percebeu que estava farto, cansado da falta da organização, da bagunça e da falta de estrutura em suas maldades. Ele reconhece que gerenciava toda a maldade do mundo de um modo muito inconsistente e aleatório.
O Diabo sentiu a necessidade de organizar as verdades em uma Igreja [algo nada surpreendente, não?].
Me pergunto: porque fundar uma Igreja? Será que Machado quer nos dizer que o Diabo estava perdendo a batalha entre bem e o mal? Não tenho certeza, não está claro no texto. Mas me parece que não.
Aparte ao conto, e contrário ao senso comum romântico, constato da simples análise do mundo que o Diabo tem levado a melhor nessa longa jornada da humanidade, um triunfo mascarado ao longo dos milênios.
Aliás, melhor reformulando: acho que o Diabo não tem nada a ver com tudo isso aí que vemos. É só o homem. Naturalmente o homem. De toda maneira, para alguns, Ele está "ganhando".
E Machado sabe muito bem disso...
O homem pós-moderno constata tudo isso de forma empírica. O século XX: nunca na história da humanidade assistimos a um derramamento de sangue tão maciço, tão sistemático. Incrivelmente até o XIX, estávamos escravizando pelo simples motivo da cor da pele de uma pessoa, justificativa inconcebível até para civilizações de economias fundamentalmente escravagistas como a romana. E agora, no auge da era digital, as redes sociais, essas modernas arenas de batalha, tornaram-se palcos perfeitos para a disseminação de ódio.
A crueldade não é tão diferente de tempos passados. A forma mudou, mas o conteúdo ainda está presente.
Ah, tem mais, preciso dizer para ouvidos mais sensíveis: também é um mundo cada vez mais religioso.
Será que precisamos de mais religião? Ou precisamos da verdadeira religião?
O mundo pós-moderno é uma ironia amarga.
Talvez, - penso eu - que a fundação da Igreja do Diabo, nos contada por Machado, possa ter mais relação com a manutenção do poder, do que rompantes de organização. Perceba que, segundo o conto, o Diabo resolveu trabalhar. O Diabo até então ganhava a fama das desgraças do mundo, do fracasso individual das pessoas, da mesquinharia do cotidiano, da crueldade; tudo isso, perceba: sem trabalhar, sem suar.
Apesar de colher os frutos, a maldade humana é tão espontânea e natural que deve ter surgido uma dúvida no Diabo: e se um concorrente aparecer reivindicando o trono do inferno, alegando que Eu, o Diabo, não está realmente trabalhando?
O Diabo sempre nutriu desconfianças em relação aos Médici's, temendo que pudessem repetir a sempre presente fusão de poder e religião que marcaram o Renascimento italiano. A corte dinamarquesa de Hamlet também estava repleta de golpistas.
É um Diabo, por assim dizer, pós-maquiavélico, humanizado [não há ironia].
Sinto que há mais motivos por trás da fundação de sua Igreja.
De toda forma, no conto, o Diabo vai até os céus e ao encontrar Deus explica qual é o projeto que pretende efetivar. Naquele momento, o Senhor recebia nos céus um ancião [Machado não dá ponto sem nó] que havia falecido. Deus e o Diabo têm uma surpreendente conversa:
A conversa continua e o Diabo diz que percebeu que, de fato, os seres humanos são muito hipócritas. E que as virtudes eram escondidas de algum modo pelo homem, da mesma maneira que ocorre com alguns vestidos de damas que são de seda, mas têm franjas de algodão, perspicazmente salientou.
O Diabo vê então a oportunidade para organizar uma cruzada no mundo em favor dos dogmas que defende, independente das outras possibilidades, das minorias, das demais ideologias; em suma, das outras pessoas [exatamente como vemos em alguns amontoados de livros sobre o cristão e a política]. Ele possui aceitação da maioria. Possui, melhor dizendo, legitimidade.
Deus olha para o diabo e diz: "Olha, muitos já tentaram isso antes. Quer tentar? Tente."
Estimulado por Deus, o Diabo passa a se organizar. Ele faz exatamente como os homens fazem com suas igrejas: vai ter sua liturgia, seu dogma e estabelece [e subverte] toda a ordem ética, moral e comportamental.
Ele passa a elogiar a ira, pois, afinal, um dos maiores livros da tradição, 'A Ilíada', começa com a ira de Aquiles. Ora, Aquiles é um herói. Ele valoriza a gula; afinal, o escritor francês Rabelais, em seu livro Gargântua, apresenta inúmeras passagens bíblicas nas quais a gula é efetivamente valorizada. Ele valoriza a avareza; afinal, a avareza é a mãe da economia. Os economistas liberais de hoje o aplaudiriam de pé, emocionados.
E tudo que até então era "ilícito e pecaminoso", passou a ser lícito e a ser uma virtude.
A Igreja do Diabo cresceu exponencialmente. Havia fiéis pelo mundo afora, em todas as línguas, em todas as regiões. Era uma igreja que triunfava. Não havia mais vergonha em ser rico e pastor, inclusive incentivava-se ser os dois ao mesmo tempo.
— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
— Explica-te.
— Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
— Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.
— Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?


Porém, num determinado momento do conto, o Diabo percebe que algo estranho estava acontecendo. Algumas pessoas, extremamente mentirosas, começaram a falar a verdade, ainda que de modo meio escondido. Um sujeito que era avaro ao extremo começou a dar esmolas, também de modo escondido. Outro, que era guloso, que comia tudo e o tempo todo, passou, sem que ninguém soubesse, a fazer uma espécie de regime. Também havia outro que mentia o tempo inteiro. Posteriormente , ainda que sem deixar transparecer, começou a falar a verdade.
Em desespero, o Diabo sobe aos céus [pelo que parece, Ele tinha acesso livre aos céus, ao contrário dos homens condenados ao Inferno] e conversa com Deus. Estava absolutamente atônito com o fato de que a ordem estava subvertida.
Sereno, Deus responde: 'Assim é o gênero humano'.
A confiança D'aquele que sabe das coisas que faz...
Machado conseguiu, com sua inigualável leveza e ironia [se fosse hoje seria cancelado], demonstrar que nós, humanos, somos contraditórios. Queremos o avesso do avesso, do contrário, daquilo que era e que não era.
É uma insatisfação generalizada. Na vida profissional, na vida pessoal. Parece que há uma angústia no âmago humano, quase que irresistível, de querer trocar de emprego, de hobbies, de esposa (o). E porquê não também trocar de igreja, de católica para protestante, de espírita para esotérica, ou, ainda, para ateu e vice-versa?
Essa angústia, quando se manifesta, vem de forma velada. Cuidado: vem como uma "angústia epistemológica", uma espécie de viés de confirmação, de tudo aquilo que acreditamos, aquelas coisas que sustentam nossa vida, mas que, na verdade, tem como essência uma contradição.
Em muitos de nós essa contradição não foi exposta, talvez até é ignorada deliberadamente. Preferimos deixá-la no subterrâneo, escondida; muito bem recalcada.
Portanto, aquela túnica de seda com as franjas de algodão, quem sabe, se transforme numa túnica de algodão com as franjas de seda, quando presentes as circunstâncias certas?
Esse poderosíssimo conto, 'A Igreja do Diabo' de Machado de Assis, nos faz refletir um pouco sobre as contradições humanas e sobre como nunca estamos satisfeitos na vida.
O ser humano é um bicho difícil de entender; a existência se impõe, como entendia muito bem Sartre!"

