Da Pureza do Ser
Seria válida a hipótese de que nascemos bons e de que a sociedade nos decompõe? A infância é sinônimo de inocência? Isto é, as crianças não seriam também essencialmente más? O livros "O Senhor das Moscas" tem algumas respostas para incautos indecisos.
Igor Andrade Carvalho
6/18/20236 min read


Em sua obra inquietante, "O Senhor das Moscas", William Golding nos lança em um abismo de reflexões acerca da natureza humana, uma verdade que muitas vezes nos esquivamos de confrontar. Falar sobre a natureza humana é uma tarefa que me cativa intensamente -, o último texto aqui também tratou disso, mas sob a perspectiva do pecado da vaidade presente no filme “Advogado do Diabo”.
Golding, por outro lado, consegue nos deixar ainda mais desconfortáveis, com uma maestria perturbadora, em que destila a essência humana, despidos dos adornos da civilização, revelando uma verdade crua que nos é, frequentemente, indigesta, ainda mais quando os sujeitos centrais são crianças – sim, porque não?
Golding foi um acadêmico britânico forjado nas salas de Oxford e um oficial da marinha na Segunda Guerra Mundial, laureado com o Nobel de Literatura em 1983, é um autor que desafia frontalmente o legado romântico da natureza humana em Rousseau.
Em “O Senhor das Moscas, Golding não apenas questiona a suposta inocência inata, mas também a eficácia da cultura como um dique contra nossas tendências mais selvagens. As crianças, protagonistas desta fábula moderna, não estão imunes à barbárie inerente ao ser humano. A obra nos força a reconhecer que, mesmo sob o véu da educação, da cultura e da religião, naquilo que entendemos como a “pureza das crianças”, o primitivo em nós espreita, pronto para emergir diante das circunstâncias certas.
Arnaldo Godoy, brilhante jurista e crítico literário, percebeu quais são as perguntas por trás da obra:
"Seria empiricamente válida a hipótese de que nascemos bons e de que a sociedade nos decompõe?
A infância é sinônimo de inocência? Isto é, as crianças não seriam também más?
A cultura nos transforma, e uma vez educados, seríamos infensos a qualquer forma de barbárie?
Uma criança educada, com os requintes de cultura, estaria permanentemente livre de qualquer comportamento animal?
O ser humano se transforma em face das dificuldades?”
A obra se desenrola em uma ilha tropical, um recanto perdido entre as vastidões do Pacífico ou do Índico – a escolha é um tributo à imaginação do leitor. A obra flutua em um tempo histórico nebuloso, indefinido, mas ao mesmo tempo, parece ser atemporal, assombrosamente encaixado no nosso tempo presente, especialmente sobre o que vemos das religiões ocidentais.
O enredo desenrola-se de maneira linear, ambientado no contexto de uma guerra atômica em Londres. Para salvaguardar um grupo de crianças escolhidas a dedo, estas são embarcadas em um avião militar com destino a um refúgio seguro. O leitor não tem a certeza necessária sobre quais foram os critérios de seleção - sempre desconfio da alegação de serem exemplos da educação cívico-religiosa e, claro, por serem filhos de políticos e empresários importantes.
Contudo, o inesperado ocorre: o avião se acidenta em uma ilha desabitada, e é nesse cenário isolado que o drama se inicia.
Nada melhor do que um "reset urbano" para fazer o laboratório social: sermos lançados em uma ilha inóspita, sem recursos externos, sem religião, sem conhecimento técnico, sem experiência de vida...
Ralph é o personagem central da narrativa. Com 12 anos, ele é retratado como forte e corajoso, possuindo um espírito organizado e ordeiro. Ralph emerge como a figura do líder democrático, bem-intencionado, mas não isento de autoritarismo, agindo em nome de um valor que percebe como coletivo [moderno, não?]
Por outro lado, temos Piggy – o garoto gordinho e míope, que depende de óculos "fundo de garrafa", como se costuma dizer. Piggy simboliza o intelectual instruído, dotado de propósitos práticos. Ele representa uma faceta diferente de liderança e sabedoria, contrastando com Ralph em muitos aspectos, mas igualmente essencial para a dinâmica e os desdobramentos na ilha.
Há também um vilão. Sim, crianças também podem ser vilãs: Jack, também com 12 anos, que será a antítese de Ralf. O menino é de uma ferocidade impensável e incontrolável.
Inicialmente, Ralph e Piggy acreditavam serem os únicos sobreviventes do desastre aéreo. Ralph, ao encontrar uma grande concha, semelhante a um instrumento de sopro, produz um som estrondoso que atrai os outros meninos. Unidos, eles tentam estabelecer alguma ordem no caos, realizando assembleias e estabelecendo regras de convivência. A posse da concha, consensualmente, representa o direito de voz nas assembleias.
Aqui, Golding tece uma metáfora poderosa: a concha, símbolo da ordem e da democracia, em contraste direto com o caos selvagem que Jack representa.
Em um ponto crucial da história, Jack consegue persuadir a maioria a se voltar contra Ralph. Consegue fazer isso incutindo medo nas demais crianças. Parece que até na ficção líderes autoritários parecem precisar de um inimigo comum e usar do medo para persuadir. Jack faz ao assustá-los sobre a existência de um misterioso animal que estaria vagando pela floresta [hoje falamos em demônios soltos por aí].
Jack torna-se então um Caçador de Porcos, “corajoso e forte”, e forma um pequeno grupo em oposição aos que seguiam a Ralf e que se comportavam como coletores. Jack e seu grupo começam a pintar os rostos, desenvolvem rituais de caça e se transformam em um bando muito agressivo.
Os grupos finalmente se dividem.: Caçadores, liderados por Jack; e Coletores por Ralph; mas que formam duas ordens distintas e aparentemente irreconciliáveis.
Essa metáfora de Golding é extremamente profunda, deixo para o leitor suas conclusões.




Na história, apesar das diferenças, ficou acertado entre eles a necessidade de que mantenha uma fogueira acesa, como um aviso para algum navio que por lá passasse, porém, o grupo de Jack esquece da obrigação. Era o turno deles. E disso segue uma violenta discussão.
Para aumentar a tensão existente, Jack e seus seguidores colocam a cabeça de um porco numa paliçada, no alto de um monte. As moscas, atraídas pelo cheiro da morte, circundam essa figura sinistra. É o “senhor das moscas”, daí o nome dado ao livro. Essa cena é uma representação grotesca, quase dantesca, de um demônio, um totem de terror e poder. Muito próximo do que vemos com bodes, atualmente.
Em Golding, nada é isolado e há muitas metáforas para as contradições do tempo moderno.
Jack manipula este símbolo para afirmar seu controle, sugerindo que somente ele e seus seguidores possuem o poder de dominar essa entidade ameaçadora. Aqui, Golding não está apenas falando sobre crianças em uma ilha; ele está dissecando a própria natureza da crença humana e do medo como ferramentas para a construção de poder e ordem social.
Este é o ponto onde a obra toca em algo profundamente enraizado na psique humana: a criação de mitos e deuses para explicar e enfrentar o desconhecido ou aquilo que pertence ao adversário [em outras palavras, o Satã, com maiúscula mesmo].
Os antropólogos culturais certamente argumentariam que Golding está, na verdade, explorando uma metáfora da religião universal e atemporal, perfeitamente cabível até os dias hoje. Neste texto, não falarei sobre isso, ficarei ainda com a natureza humana.
À medida que "O Senhor das Moscas" se encaminha para o seu clímax, o conflito escala para níveis chocantes. Matam, Piggy. O conflito é sangrento. Ralf, sozinho, corre desesperadamente, como num sonho de angústia. [hoje, como somos civilizados, prendemos as pessoas].
Ralph chega na praia, um oficial naval, que lá está, o protege.
O desfecho é tão dramático quanto irônico. Quando oficial encontra Ralph em um estado de desespero extremo, inicialmente pensa que as crianças estavam apenas brincando, por serem supostamente puras, um equívoco que rapidamente se desfaz ao perceber a gravidade do que realmente aconteceu. Aqui, mais uma crítica mordaz. O oficial, um adulto, representante da civilização e da ordem, não consegue conceber que crianças, especialmente crianças inglesas, símbolos de uma cultura civilizada e superior, pudessem descer a tal nível de barbárie.
"O Senhor das Moscas" teve sua adaptação para o cinema, o que amplifica seu alcance e impacto. Contudo, é fundamental reconhecer que a obra de William Golding vai muito além de uma simples narrativa de aventuras juvenis. Estamos diante de um estudo profundo e incisivo sobre a condição natural do ser humano, um tema que sempre evocou debates acalorados e reflexões profundas.
A história desses meninos, abandonados à própria sorte, é um microcosmo que revela a fragilidade e os limites dos instintos humanos.
Nos leva ao imponderável.
Nós não somos e nunca fomos inocentes. Nós somos também instinto, um instinto disfarçado, numa razão astuta e numa maldade, que hoje, como nunca antes, está dissimulada em normas de convivência, que não respeitamos.