O Príncipe, de Maquiavel

No lugar-comum da tradição ocidental, Maquiavel é conhecido como a própria representação da astúcia, da dissimulação, da maldade; o substantivo próprio se transformou em adjetivo cheio de antropologia negativa. O substantivo próprio — Maquiavel — desdobrou-se num substantivo comum, maquiavelismo, e num adjetivo, maquiavélico. Será mesmo?

Igor Andrade Carvalho

6/15/20237 min read

Produto da renascentista Florença, Niccolò Maquiavel (1469-1527) veio ao mundo em uma família cuja linhagem e fortuna pareciam inicialmente desprovidas do destino grandioso que o esperava, sobretudo no que diz respeito à sua reputação póstuma. Seu pai chamava-se Bernardo Maquiavel; sua mãe, Bartolomea Nelli. O pai era advogado. Pouco conhecido, teria exercido a profissão sem grande prestígio e riqueza. Parece também que Bernardo foi um rígido pai. Sobre sua mãe pouco se sabe, mas é certo que não descendeu de família influente e rica na Toscana. Maquiavel teve uma educação simples, seus pais não podiam pagar-lhe uma educação do tamanho daquilo que seria seu legado intelectual.

Em 1498, aos 29 anos, foi designado secretário na Segunda Chancelaria de Florença, iniciando assim uma carreira diplomática distinta no serviço público, porém pouco afortunada. Defensor dedicado da República Florentina e dos princípios que sustentavam sua governança [sim, isso mesmo, Maquiavel é um ferrenho republicano!], Maquiavel tinha entre suas responsabilidades a inspeção direta das fortificações da cidade. Nos anos seguintes realizou várias missões diplomáticas envolvendo a França, Alemanha, os Estados papais e diversas cidades italianas, como Milão, Pisa e Veneza. Entre 1502 e 1503, Maquiavel já exercia o cargo de embaixador junto a César Bórgia, filho do papa Alexandre VI e capitão das forças papais.

O colapso da República Florentina em 1512 precipitou o período mais sombrio da sua vida. Por republicano que foi, em 1513 esteve preso e submetido à tortura, um evento traumático que o marcaria profundamente. Apenas em 1519 conseguiu retomar uma função pública em Florença, mas em 1521, foi obrigado a se retirar permanentemente da vida política. Nos seus últimos anos, Maquiavel dedicou-se inteiramente à literatura, escrevendo sobre história, ciência política e ficção (a exemplo de: Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, 1521; A arte da guerra, 1520; A mandrágora, 1518).

Faleceu em 21 de junho de 1527, aos 58 anos, empobrecido e sem qualquer influência política. Sua morte selou o fim de uma era tumultuada, mas sua obra e pensamentos continuaram a ressoar, influenciando gerações futuras no campo da filosofia política - e porquê não também no campo dos comezinhos diários?

Maquiavel afastou da teorização política a invenção da realidade. Não expôs nenhuma utopia social ou política em suas obras, como tentou fazer Marx e liberais clássicios. Mas também não legou previsão de um mundo distópico. O futuro não é sombrio e nem nirvânico, nem infernal e também não é um paraíso. É apenas o resultado de nossa ação, pautado por nossos cálculos e escolhas, e também influenciado por eventos externos, que fogem de nosso controle.

Sua principal preocupação consistia no esforço em influenciar a condução dos negócios públicos da cidade. Assim, pode-se dizer que Maquiavel era um prático, não queria teorizar, apenas intervir na realidade. O Príncipe não é um trabalho de ideologia ou de doutrinação, é um livro de conselhos políticos. Uma espécie de “estoicismo político”. É justamente sob esta lente que devemos compreender “O Príncipe”.

Realista, Maquiavel procurou explicar com exemplos históricos suas análises políticas. Continuou uma tradição de historiografia que remontava a Cícero, e que via a história como “mestra da vida” [para Cícero a história ensina os homens do presente a agirem da melhor forma e com prudência]; contudo, inova ao recortá-la para uma “mestra política”. A história foi por ele utilizada como recurso retórico para aconselhamento político do príncipe.

Seguindo esta tradição, Maquiavel incute lições morais [não necessariamente éticas] por meio de um estilo recorrentemente exemplificativo. No Príncipe há várias personagens da antiguidade greco-romana e oriental, que buscou em Tito Lívio, Plutarco e nas Escrituras. Há também um desfile de seus contemporâneos, ou de personagens muito próximos de seu tempo.

Mas o que, de fato, Maquiavel aconselha?

Por exemplo, Maquiavel aconselha que o príncipe [leia-se “governante”] deva saber quando ser bom e quando ser mau, punindo com leis ou com violência se necessário. Mas ser temido não é o mesmo que ser odiado. O melhor caminho é o do equilíbrio: prudência e firmeza.

Ah, vai além: para ele é melhor que o príncipe seja mais temido do que amado. O governante temido mantém o povo em paz, unido e leal. É preferível que um indivíduo seja prejudicado do que todo o reino, devido à fraqueza de um príncipe piedoso.

“deve um príncipe viver com seus súditos de forma que nenhum incidente, mau ou bom, faça variar seu comportamento: porque, vindo às vicissitudes em tempos adversos, não terás tempo para o mal, e o bem que fizeres não te será creditado, porque julgarão que o fizeste forçado”.

“Os homens têm menos receio de ofender a alguém que se faça amar do que alguém que se faça temer. […] Deve, porém, fazer-se temer de modo que, se não atrair o amor, afaste o ódio”

A postura do príncipe deve estar pautada em cinco atributos: piedade, fidelidade, humanidade, integridade e, claro, a mais importante, a religiosidade [contém ironia]. Mas em caso de necessidades, agirá de forma contrária a estas qualidades.

“deves parecer clemente, fiel, humano, integro, religioso – e sê-lo, mas com a condição de estares com o ânimo disposto a, quando necessário, não o seres de modo que possas e saibas como tornar-te o contrário”.

O povo também precisará de distrações, como festas e espetáculos, mas também é preciso de grandes exemplos comportamentais.

“Nada torna um príncipe tão estimado quanto realizar grandes empreendimentos e dar de si raros exemplos”.

Se inevitável a prática do mal, que os faça todos de uma vez só. Já o bem, que se faça aos poucos para que o povo o saboreia mais.

“O mal deve ser feito de uma só vez, de modo a que, saboreando-o menos, ofenda menos; e o bem deve ser feito a pouco e pouco, para que todos possam apreciá-lo”.

Os que alcançam o poder por meio de crimes não são celebrados como homens de virtude. Mas Maquiavel descreveu duas possibilidades para o uso da crueldade.

“Se o crime for de extrema necessidade, a maldade é justificável se, depois disso, apenas o bem for praticado; se o crime se perpetuar, o príncipe faltará com escrúpulos.”

Em essência, o príncipe deve manter-se perpetuamente vigilante quanto ao manejo das armas, esquivar-se do descontentamento popular e estar apto a proteger-se contra os poderosos, quer internos, quer externos. Seguindo estes preceitos, ele assegurará a preservação de seu poder e o desenvolvimento social e econômico do seu principado.

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A bem da verdade é que a fama de Maquiavel no lugar-comum decorre da capacidade de apreensão e da ingenuidade dos leitores que encontrou. O destino dos livros depende de seus leitores; não se pode negar que a acusação de que Maquiavel justificaria todas as tiranias dependem menos dele e mais dos tiranos que o aplicaram. Há Maquiavel para todos os gostos, projetos e regimes políticos; há quem impute a Maquiavel a culpa de tentar conduzir a humanidade para a perdição; e há quem acuse Maquiavel de tentar conduzir a humanidade para a salvação.

A razão de Estado certamente não é uma invenção sua. A ação política, porém, em seu sentido utilitário, é uma originalidade de seu pensamento. Sua doutrina é relativamente simples: as circunstâncias da vida tornam inaceitável para a governança o moralismo político das teorias clássicas. Diante da malevolência humana, o príncipe não deve correr riscos. Maquiavel sofreu literalmente na pele esses dilemas humanos e políticos. Enfrentou divisões internas que enfraqueciam a Itália, tornando-a presa fácil de potências estrangeiras. Sua Itália era dividida em mais de uma dúzia de reinados independentes, ducados, feudos, cidades-estado e repúblicas. Não é por acaso a unificação italiana ter se concretizado somente 300 depois (1871). Maquiavel era claramente um homem do seu tempo, que deixou de fabulizar a realidade política, como fez Platão, para se preocupar com a vida real, a única que nos permite algum espaço de ação prática.

Otto Maria Carpeaux, um dos luminares da crítica literária brasileira, soube desvendar a complexa tapeçaria de reputação que envolve Maquiavel. Carpeaux pontua: “a glória, já se disse, é um conjunto de mal entendidos que se criam em torno de um nome”.

E que nome carrega mais mal entendidos do que Maquiavel?

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“Quero ir para o inferno, não para o céu. No inferno, gozarei da companhia de papas, reis e príncipes. No céu, só terei por companhia mendigos, monges, eremitas e apóstolos” - Maquiavel.