Segredos Sussurrados
O filme Advogado do Diabo é um lembrete inquietante de nossa [pecadora] essência humana.
Igor Andrade Carvalho
2/22/20245 min read


Kevin Lomax, um jovem e brilhante advogado criminal, interpretado por Keanu Reeves, conquistou renome ao nunca perder um caso criminal, independentemente da natureza do crime. Seu segredo reside em sua habilidade singular de escolher jurados, mesmo que todas as circunstâncias apontassem o contrário, um talento enigmático que mantém os observadores intrigados.
Lomax é advogado de uma cidade agrária do interior e acaba seduzido pelo brilho das grandes metrópoles e pela promessa de uma carreira jurídica fulgurante em Nova York. Contudo, ao adentrar os domínios da poderosa firma de advocacia de Manhattan, ele se vê enredado nas teias intransponíveis... da sua vaidade.
“Advogado do Diabo", uma produção de 1997, sob a direção habilidosa de Taylor Hackford [sem dúvidas, seu maior trabalho], conta ainda com atuações magníficas de Al Pacino e da belíssima Charlize Theron. O título em si, em seu significado literal, provoca uma sacudida nas interpretações metafóricas usuais da expressão "advogado do diabo"; pois, neste caso, o próprio Diabo (Al Pacino) assume o manto de um advogado [surpreso?].




Despojando-se dos elementos sobrenaturais que permeiam a narrativa - não menos interessantes e com efeitos visuais bem construídos para 1997 -, o filme me evocou pensamentos sobre discussões que inquietam o homem há muito tempo: a natureza humana e os limites do nosso livre-arbítrio.
Não me atrevo a esgotar o tema do livre-arbítrio em sua vastidão - que abrange religião, filosofia, direito, neurociência, psicanálise e mais. Tal pretensão seria não apenas uma falácia, mas uma grande ignorância intelectual. Quanto à 'natureza humana', ah, aí reside um abismo ainda mais profundo. A perspectiva de Sartre, que coloca a existência antes da essência, evidencia a complexidade deste debate. Portanto, falar em natureza humana é adentrar um terreno escorregadio de incertezas e conjecturas, o qual não vou me arriscar.
Abordagem aqui é mais modesta, porém não menos provocativa - sim, isso mesmo!
Se a precisão científica nos escapa ao tentar definir a natureza humana, permita-me, então, navegar pela noção do pecado - ou melhor, a inevitabilidade do pecar. Este elemento, curiosamente, parece ser um traço comum em nossa espécie, um elo inquebrantável que conecta a humanidade através de suas múltiplas manifestações culturais e temporais, especialmente dentro da tradição judaico-cristã que estamos inseridos.
Com seu drama jurídico envolvente, Lomax serve de espelho para esta nossa reflexão, personagem que é o arquétipo perfeito do homem moderno, seduzido e consumido pelos seus desejos e ambições. Sua jornada é um microcosmo da eterna dança entre o que queremos e o que é moralmente aceitável – seja lá o que for isso dentro de uma sociedade moralista e religiosa como a do Brasil.
Em um dos grandes diálogos do filme, a personagem de Al Pacino sustenta – por sinal, de maneira grandiloquente - que a humanidade tropeçou no abismo do pecado, e que não foi o Diabo quem segurou a mão de Eva e a guiou até o fruto proibido. Ele não foi o maestro dessa queda; ao contrário, ele apenas desvelou, com uma frieza calculista, a vaidade e o egoísmo que já se aninhavam confortavelmente no coração humano desde dos tempos da "perfeição" do Jardim do Éden.
Foi o homem, em seu exercício de livre-arbítrio, quem escolheu trilhar esse caminho sombrio. A tragédia disso reside no fato de que o pecado não é uma aberração externa, uma criação diabólica, mas um componente intrínseco da natureza humana, uma inclinação quase irresistível para sucumbir aos próprios instintos e perversões.
A ironia divina se manifesta aqui: Ele (digo, Ele mesmo, com maiúscula!) sabia, não só por onisciência, mas por compreender a essência humana, que Eva cederia à tentação. E, ainda assim, estabeleceu regras antagônicas à natureza humana. Regras que demandam a negação do pecado, e, por extensão, a negação da própria humanidade do homem - um paradoxo contraintuitivo que Milton (Al Pacino) acredita e gostaria de ter falado no filme.
O que vemos no filme, por outro lado, é um Diabo que se julga como um verdadeiro humanista, propondo formas para o homem viver de acordo com sua própria natureza - essa já expressamente dita por Milton.
Ora, não é à toa que, quando Diabo vem a terra, toma como profissão um campo onde a moral está além da moral estabelecida por Deus: o direito [sim, risos!]
No seu escritório luxuoso, que reflete um gosto impecável (Diabo tem bom gosto na arquitetura), Milton defende uma gama eclética de clientes: criminosos, empresários e, claro, religiosos que fedem hipocrisia [senão o orgulho, outro pecado capital]. Exercer a advocacia, neste contexto, não é apenas uma profissão; é uma forma de escancarar a hipocrisia divina – segundo o próprio Diabo. A corrupção do homem não é uma influência externa; ela é inata, um presente irônico das próprias mãos de Deus.
A carga da responsabilidade pelas ações individuais é esmagadora, especialmente em um mundo onde a vaidade e as aparências ditam escolhas mais do que valores genuínos ou autonomia moral. De fato, é tão simples quanto parece.
Para preservar o status quo, muitas vezes, o 'mal' é redefinido e adaptado às conveniências, sob o manto religioso.
Kevin, nosso protagonista, gradualmente percebe essa verdade amarga. Sua vaidade e ambição, embora fontes de prazer, transformam sua vida em uma existência miserável. Ele compreende a responsabilidade imposta pelo livre-arbítrio; reconhece que negar as intenções de suas ações sob o pretexto do exercício da advocacia não o exime das consequências, apenas torna o julgamento social mais ambíguo (senão, chique) devido à sua posição como advogado.
Seguir os caminhos e segredos sussurrados pelo Diabo lhe concedeu poder, mas não felicidade. Kevin percebe que todo o sofrimento que infligiu à sua mãe e esposa não foi obra do Diabo, mas um reflexo de suas próprias escolhas.
No clímax, Kevin opta pelo suicídio - um exercício final de seu livre-arbítrio. Prefere a morte a viver uma vida que não reconhece como sua, percebendo que não pode se livrar de seu pecado inerente, de sua vaidade. A cena final é um golpe visual e emocional.
Kevin, em sua última ação, é livre. Porém, ele não é livre das consequências de suas escolhas: segundo as tradições, seu destino é o inferno.
No fim das contas, o que 'Advogado do Diabo' nos convida a fazer não é apenas questionar as escolhas de Kevin Lomax, mas também as nossas. Ele nos força a encarar a verdade desconfortável de nossa própria falibilidade e a natureza inerentemente conflituosa de nossos desejos e moralidades. Talvez, em última análise, a verdadeira questão não seja sobre vencer ou perder nossas batalhas internas, mas sim sobre até onde somos capazes de controlá-las.
Então, livre arbítrio?
“Vaidade... Definitivamente é o meu pecado favorito” – Milton
“Vaidade de vaidade, diz o Pregador; vaidade de vaidade, tudo é vaidade” - (Eclesiastes 1:2).
"Podes escolher segundo tua vontade, porque te é dado" - (Moisés 3:17)